A propósito, vem-me à memória o caso daquele pintor antigo [Cícero] que, no sacrifício de Ifigênia, teve de representar o sofrimento dos diversos personagens segundo o grau de interesse que cada um votava à bela e inocente jovem, e que ao chegar ao pai da virgem já havia esgotado todos os recursos de sua arte. Diante da impossibilidade de dar-lhe uma atitude em relação com a intensidade da dor, pintou-o de rosto coberto, como se nenhuma expressão pudesse ilustrar semelhante desespero. Eis por que os poetas imaginam a miserável Niobé, que depois de perder seus sete filhos viu morrerem as sete filhas, transmudada em rochedo pela sobrecarga de desventura:
“Diriguisse malis,“
”Petrificada pela dor” [Ovídio]
,a fim de exprimir essa espécie de embrutecimento sombrio, surdo e mudo que se apodera de nós quando as ocorrências nos esmagam ultrapassando o que nos é dado suportar. E, efetivamente, sua dor excessiva, exatamente porque excessiva, deve estupidificar a alma a ponto de paralisar qualquer gesto, como acontece quando recebemos inesperadamente uma péssima notícia. Somos tomados de espanto, penetrados de pavor ou de aflição e como tolhidos em nossos movimentos até que à prostração suceda o relaxamento. Surdem então as lágrimas e os lamentos que aliviam a alma e como que lhe permitem mover-se mais à vontade:
“Et via vix tandem voci laxata dolore est.”
”É com dificuldade que afinal recupera a voz e pode exprimir sua dor” [Virgílio].
Durante a guerra do Rei Fernando contra o rei da Hungria perto de Buda [Budapeste] um dos guerreiros mostrou-se particularmente valente nos combates que se verificaram. Ninguém o reconhecera e todos o elogiavam e lhe lamentavam a sorte porquanto sucumbira na refrega. E ninguém mais do que um Senhor de Raisciac, fidalgo alemão, o engrandecia, entusiasmado com tão rara coragem. Recolhido o corpo, Raisciac aproximou-se como os demais para ver quem era, e ao lhe tirarem a armadura reconheceu o filho. A emoção dos presentes aumentou mais ainda; só ele permaneceu impassível, sem dizer palavra, sem pestanejar, de pé, contemplando fixamente o corpo até que a violência da dor tendo atingido o próprio princípio da vida o derrubasse para sempre.
“Chi puo dir com’ egli arde, a in picciol fuoco,”
”Quem pode dizer a que ponto arde, arde bem pouco” [Petrarca],
Sobre a Tristeza - Montaigne
Ensaios – Vol 1